Depoimento de David Santos, professor e crítico de arte
Os becher e “a fuga a uma ideia da fotografia como ‘instantâneo’”
Por Sérgio B. Gomes
 
  
Bernd & Hilla Becher, Torres de arrefecimento, 1972 (Marian Goodman Gallery)

 

Que importância atribui ao trabalho iniciado por Bernd Becher no panorama actual da fotografia?
Não se pode falar do trabalho de Bernd Becher sem referir a sua companheira de uma vida, Hilla. O labor a dois que eles produziram ao longo das últimas décadas transformou de um modo decisivo a fotografia contemporânea, recentrando-a no domínio quase obsessivo da serialização arquivística, a partir de novos valores formais observados na herança da arquitectura industrial. Se a frieza do olhar fotográfico é uma evidência no trabalho dos Becher, ela é contornada pelo rigor conceptual que as diversas combinações tipológicas suscitam a cada comparação. E se o objecto das suas imagens não parece ser verdadeiramente signficativo, a assunção formalista e documental que daí resulta só pode ser entendida à luz de uma atmosfera de cientificidade que sempre acompanhou este registo. Na pluralidade desumanizada dessas fábricas esquecidas e abandonadas, que as grelhas depuradas de 9, 12 ou 15 imagens acentuam, os Becher revelam-nos fundamentalmente uma aura arqueológica incontornável, como se estivessemos apenas perante mais um vestígio longínquo. Resta saber como continuará Hilla Becher a trabalhar, depois da morte do seu inseparável Bernd.

 

Nas três principais colecções de fotografia em Portugal (BES; Berardo; Serralves; Ellipse Foundation) há imagens de Bernd e Hilla Becher. Parece que é obrigatório ter o nome desta dupla em qualquer colecção de fotografia contemporânea. A que se deve, na sua  opinião, esta omnipresença?
Os consensos geram sempre uma espécie de estabilidade ou paradigma, e os Becher são hoje considerados uma das grandes referências da arte contemporânea. Por isso, qualquer instituição ou coleccionador que se preze não dispensa o trabalho desta dupla. Mas se esta unanimidade pode favorecer alguma falta de originalidade na estruturação das colecções, também é certo que as séries dos Becher são absolutamente essenciais para entender e enquadrar não só a experiência fotográfica dos anos 70, e a sua relação com os conceitos de desesteticização e interdisciplinaridade pós-minimalista, como ainda a produção que hoje domina o meio artístico internacional.

 

A nova objectividade alemã na fotografia está na moda?
Creio não se tratar de um fenómeno de moda. A importância dos Becher é já histórica, e o conceito de “Nova Objectividade” projectado também a partir da sua acção apresenta hoje inúmeras variantes, ultrapassando em muito a sua experiência particular. Todavia, o poder dessa herança e desse património artístico prevalece como matriz de uma influência mais ou menos subtil e indirecta sobre as novas gerações de artistas. E esse é um aspecto que afasta qualquer tipo imediatismo circunstancial e efémero quando observamos o rasto da “Nova Objectividade” alemã.

 

Para além dos artistas saídos da chamada “escola de Dusseldorf” ou “escola Becher”, nota algum tipo de influência desta maneira depurada de fazer fotografia noutro grupo de artistas?
A partir da sua sua docência na Kunstakademie de Düsseldorf, os Becher influenciaram como poucos alguns dos melhores artistas da actualidade que utilizam de modo prioritário a imagem fotográfica. De um modo directo, todos nos lembramos de imediato dos seus alunos Candida Höfer, Thomas Struth, Andreas Gursky ou Thomas Ruff, mas se observarmos com mais atenção, há artistas aparentemente tão insuspeitos como Sugimoto ou Fischli e Weiss que se enquadram, pelo menos em parte, no jargão formal dos Becher. A depuração do seu exercício documental e a fuga a uma ideia da fotografia como “instantâneo” fez escola, sendo hoje um dos vectores mais influentes da prática artística contemporânea.

 

Que comentário lhe merece a secundarização da importância da luz a favor da forma no trabalho destes artistas?
Se nos alvores da fotografia, Fox Talbot havia definido que esta era “a arte de fixar a luz e as sombras”, o trabalho dos Becher veio introduzir uma outra via de investimento ao nível da imagem fotográfica. Por isso também os seus trabalhos precisam de ser apresentados em série, como exercício que abdica da imagem autónoma. Por outro lado, ao secundarizar a importância da luz, os Becher favorecem um distanciamento sobre qualquer espécie de transcendência poética da imagem, permitindo ao mesmo tempo que a magnitude da sua mensagem se fundamente na monumentalidade triste e desapaixonada de um olhar quase científico.