Depoimento de Maria do Carmo Serén, historiadora e colaboradora do Centro Português de Fotografia
Os Becher e a importância da “verdade fotográfica”
Por Sérgio B. Gomes
 
  
Bernd & Hilla Becher

 

Que importância atribui ao trabalho iniciado por Bernd Becher no panorama actual da fotografia?
O que os Becher representam é o desafio à noção de arte a que a fotografia sempre se encostou, (aura, sensibilidade), naturalmente ligada à representação e à criação. As imagens dos Becher, no fundo uma forma sistemática e tipológica de fazer arqueologia industrial, (limpando o excesso, céu limpo, como já Baldus fazia) surgem como metáforas, símbolos: uma imagem é uma imagem, o que vale é a percepção, desvincula-se do contexto e do próprio objecto. Ligam-se à arte conceptual: frias, neutras, com o seu ‘quê’ de documento interpretado. Pura frontalidade da tomada fotográfica e grande rigor. Mas, porque se vive uma crise generalizada nas artes (que leva à caracterização do banal como o real, à não-autoria, desconstrução, etc.), que tenta abolir um vocabulário arcaizante (emoção, expressão e subjectividade), que também se insere nas alterações criadas pela passagem da sociedade do espectáculo para a da comunicação, e se procura um novo sentido (é o chamado mal-estar do saber), as suas obras, na Escola de Arte de Dusseldorf acabam por ter influência nessa busca de sentido.
São fotos pequenas 30X40, mas também 50X60. As grelhas, as sequências, retiram-lhe a intenção artística. Isto é também importante.
Sinceramente acho que são os efeitos da sua obra que contam, as orientações tomadas pelos discípulos, nomeadamente os que se tornaram famosos na arte visual.

 

Nas três principais colecções de fotografia em Portugal (BES; Berardo; Serralves; Ellipse Foundation) há imagens de Bernd e Hilla Becher. Parece que é obrigatório ter o nome desta dupla em qualquer colecção de fotografia contemporânea. A que se deve, na sua  opinião, esta omnipresença?
Colecções com o espírito de informação cronológica precisam de fotos suas. Os historiadores de arte insistem nessa relação de efeitos; os Becher acentuam o seu papel de transição pelo facto de fotografarem a peto e branco, embora sem sensacionalismo. A tendência, hoje, é autonomizar mesmo a fotografia de uma história de arte tradicional (a fotografia já teve a sua história das técnicas, depois adquiriu a história de arte). Hoje a posição é polémica. E é-o precisamente porque se pretende encontrar um fio condutor através de influências de causa-efeito. Se a fotografia é, como hoje se quer, um argumento a conquistar adesão do público, nem o que está para trás interessa muito, nem as imagens dos Becher encontram realmente eco fora da arqueologia industrial. O que me parece que os Becher possuem é coerência na sua proposta tipológica que impõe neutralidade, o que é uma coisa importante, assim como a questão da verdade fotográfica. Mas a fotografia dos seus discípulos, a cor, grande formato, retomam a imagem-quadro e assim a aproximação da pintura.

 

A nova objectividade alemã na fotografia está na moda?
 O que eu acho que está na moda hoje é um sincretismo, provocado pela desautorização do pós-modernismo. Aí cabe tudo, neo-barroco, neo-pictorialismo - que toda a imagem manipulada em computador recria -, um realismo alterado pela influência do vídeo, muito movimentado e oscilante que se ajusta às leis de exclusão de publicação de muitas imagens, temas de catástrofe e solidão (doença, medo, morte, o que eu chamo o sentido de violação), biografia e uma grande variedade de fotografia gnóstica (horror ao mundo, etc., desde Martin Parr...)
Considero mesmo que se tenta fugir à classificação académica, influência directa de corrente artística (o que há é de acordo com as galerias, museus, etc.,um forte revivalismo do que tem sido criticado, modernismo, surrealismo, humanismo, expressionismo e mesmo os subjectivismos dos anos 60 e 70). Os fotógrafos aceitam que o digital é irreversível e dedicam-se a sistemas de fuga no analógico ou a ensaios inovadores no digital.

 

Para além dos artistas saídos da chamada “escola de Dusseldorf” ou “escola Becher”, nota algum tipo de influência desta maneira depurada de fazer fotografia noutro grupo de artistas?
Sim, claro, porque a ausência de lirismo ficou em muitos fotógrafos. Até mesmo em Molder, que pretende um trabalho essencialmente intelectual e seco. Mas como em tantos fotógrafos a amálgama de influências e criatividade própria desnatura qualquer indicação, por exemplo, se há perfeição técnica e rigor, há um brilho especial no preto e branco - liga-se mais à pintura e à literatura. Também foram alunos dos Becher Axel Hütte, Simone Nieweg, Stromberg, nos New Photographers (USA), (altereação da terra pelo homem, indústria e urbanismo actuais, (Basilico, Boo Moon, Stromberg, Seino...), a "Deadpan" e os New Topographs, como cá se vê nos útimos projectos de paisagem do José Afonso Furtado. 
E, se quisermos, as imagens quase nuas (já nos retratos de Ruff) e, por exemplo em Edgar Martins e nas paisagens recentes de Danilo Pavone.

 

Que comentário lhe merece a secundarização da importância da luz a favor da forma no trabalho destes artistas?
A luz era o modo de dar forma e expressividade na fotografia analógica. Foi perseguida por todas as correntes que o conceptualismo criticou. Teria de ser inevitavelmente secundarizada no seu aspecto extremo. Mas há também o papel da desmistificação dos sentimentos e emoções que pretendia provocar. Mas hoje também se difunde o enquadramento neo-barroco, com um cenário central muito iluminado a cor (esbatimento exterior a negro ou escuro) ou a luz da paisagem urbana nocturna que pode surgir como motivo principal, inserida em flashes de influência do vídeo. Naturalmente omite-se na composição manipulada em computador.
É curioso que também o neo-classicismo, para contrariar o barroco e dar ênfase à cenarização neutralizou a luz.

 

Acha que há neste projecto meticuloso alguma espécie de saudosismo por uma certa maneira de fazer fotografia “à século XIX”, muito empenhada em catalogar o mundo?
Não, não encontro relação com o período de registo, que corresponde, afinal, a uma história técnica da fotografia. O individualismo de hoje exige que se fale apenas de interpretação. O mundo tem como fulcro a percepção do sujeito. Seja uma interpretação conceptual, o sujeito revê-se (tem a sua autoria assegurada) na expressão pública do seu processo (se a obra é aberta e a autoria não lhe pertence, ao menos pertence-lhe o processo); seja numa fotografia auto-biográfica, auto-representação, paisagem ou retrato, o fotógrafo sabe - e quer - revelar-se a si mesmo.